20.11.07

Bienal do Mercosul - um breve relato

Consegui pegar os últimos dias da Mercosul desse ano. Mais compacto que edições anteriores, o evento estava conformado a partir de 3 seções ou módulos curatoriais: Zona Franca, Conversas e Três Fronteiras, instaladas/os nos belos armazéns/galpões da área do Cais do Porto. Além disso, completavam a programação da Bienal uma grandiosa mostra do argentino Jorge Macchi, no Centro Cultural Santander e uma exposição dupla no MARGS, apresentando a produção do uruguaio Matto e do sueco-brasileiro Öyvind Fahlström [este último uma grata surpresa], nomes pouco familiares a nós.
Alguns aspectos gerais se impôem como diferenciais nessa edição da Mercosul e
chamam a atenção: notadamente a intensificação do aspecto internacional da mostra, com a presença de diversos artistas "off-cone sul", a segmentação curatorial em vários módulos [ainda que sob a coordenação do curador-geral, o espanhol Gabriel Pérez-Barreiro] e a ênfase num projeto cuidadoso envolvendo o setor pedagógico [a cargo do artista uruguaio Luis Camnitzer].

A linha de abordagem geral proposta pela curadoria apoia-se na conhecida metáfora - mas não exatamente um "tema" - da terceira margem do rio de Guimarães Rosa [curiosamente já explorada na Bienal de São Paulo de 1996 por Agnaldo Farias, curador-adjunto de Nelson Aguilar]. Simbolizaria "uma possibilidade de criação de uma terceira forma de perceber a realidade, rompendo com as dualidades que a delimitam", nas palavras de Pérez-Barreiro, podendo ainda aludir à geografia regional, definida por fronteiras pluviais e "ao antagonismo entre regionalismo fechado e globalização sem diferenças". De qualquer forma, essa "imagem" é trabalhada de forma leve, e aos que se disporem pode-se achar aqui e ali alguns rebatimentos nessa linha, mas realmente não foi algo a que me ative.
Foi mais interessante notar como a curadoria se dá de modo dissipado, ou partilhado de modo generoso nos diferentes módulos; fica clara a opção por não se valorizar uma curadoria "de mão forte", centralizadora - ainda que Pérez-Barreiro participe ou atue nos três módulos, ele sempre divide a[s] curadoria[s] com outros convidados. O que não impediu a conjunção de momentos felizes, mesmo analisando sob uma perspectiva meio "patrulhadora" deste ponto de vista - sobretudo no setor Conversas, onde os curadores [o próprio Pérez-Barreiro e o uruguaio Alejandro Cesarco] convidavam um artista, que por sua vez convidava mais dois nomes - com total liberdade e pelos critérios que quisesse, fosse por afinidades estéticas, afetivas, etc. A estes, a curadoria somava mais um ["complementando" o conjunto ou, por vezes, para funcionar deliberadamente como uma espécie de contraponto, o que em alguns casos funcionou bem], com a mesma liberdade que delegavam ao primeiro artista. Os resultados naturalmente variavam muito, mas o formato tem seus méritos; nem que seja justamente pela aposta no incerto, o que aliás ressaltava a pegada, digamos, "democrática" do pensamento curatorial.
Por outro lado, a seção 3 Fronteiras é/foi francamente o ponto fraco do evento. Tratava-se de um núcleo em que quatro artistas foram chamados para participar, nos moldes de um programa de residências, tematizado na chamada tríplice fronteira [Brasil/Paraguai/Argentina]. Eram então convidados a desenvolver projetos para e/ou a partir dessa situação - física/política e geopolítica.
O formato, apesar de promissor, apresentou resultados - "plásticos" ou "estéticos" - desapontadores, a meu ver, com projetos que em pelo menos dois casos pareciam funcionar melhor sem a materialização concreta em "obras de arte" [ver imagem abaixo].


[continua]

27.10.07

Sistema deixa artista morrer de fome


O artista plástico belga Jean-Philippe Ballestere, 48, faleceu em 23/10 alegadamente de insuficiência conceitual, em Lyon, na França. Suas últimas e intrigantes palavras teriam sido "...o horror...o horror...a beleza do horror...maldito sistema institucional da arte", segundo duas enfermeiras que o assistiram no hospital público onde estava internado. Ballestere, segundo se apurou posteriormente, atravessava um momento de forte crise criativa, em detrimento das demandas de crítica institucional em alta no circuito da arte contemporânea, às quais sua produção não correspondia. Sem outros meios de sustento, o artista passou a viver na rua até ser internado no hospital onde veio a falecer. Sua morte vem sendo explorada por grupos de tendências neo-modernistas como emblemática de "um sistema que se tornou impermeável à verdadeira natureza da arte e repressor de manifestações estéticas que não têm pudores em se comprometer com a beleza", nas palavras de Emil Kunstern, artivista que liderou movimento de protesto pelas condições da morte de Ballestere.

[fonte: Agência Blissett]

14.10.07

Obras decorando obras? Impressões sobre o projeto "Homens trabalhando/Triptyque"

Há coisa de menos de dois meses [agosto/setembro de 2007], houve um evento artístico de curta duração, em São Paulo, denominado Homens trabalhando. Tratava-se de um projeto coordenado pela nova galeria FlorenceAntonio, cujo perfil de atuação passa por não ter uma sede ou espaço "físico". Assim, a proposta é trabalhar seus artistas em exposições de formatos menos usuais, investindo em iniciativas "virtuais" e projetos em espaços "não-institucionais". É - ou era - o caso da proposta em questão, que transcorreu no que era [ou é] um edifício ainda em construção - este, por sua vez, um projeto do grupo de arquitetos Triptyque, que teria como diferencial a valorização e aproveitamento das características locais buscando ainda incorporar as "circunstâncias climáticas" e a natureza a suas produções. A premissa era interessante: apesar da semelhança com inúmeras empreitadas em outros "espaços alternativos", "não-lugares" e similares, o próprio fato de ser num prédio ainda em obras já indicava um diferencial potencialmente estimulante no que tange ao aproveitamento do contexto. A iniciativa se pauta num "diálogo entre o refinamento das obras de arte [sic] com a estética crua de um prédio ainda inacabado", segundo o site da mostra, que ainda aposta que o projeto "certamente vai suscitar novas análises, analogias, reflexões e revelações sobre arte e arquitetura". Muito bem. A questão da "memória do lugar" - afetiva, simbólica, física -, o tal "genius loci", tão explorada em outras "ocupações artísticas" [da qual os ArteCidade são o exemplo mais emblemático], não estava em jogo; nem poderia, uma vez que tratava-se mais do "vir-a-ser", das promessas de bem-estar que povoam o imaginário da classe-média tão características de projetos arquitetônicos desta natureza.


Ora, mas se o canteiro de obras é "um local instigante, que proporciona novas emoções e impressões sobre a arquitetura", como tb se lê no mesmo texto de apresentação, a impressão é a de que isso deve acontecer em outros contextos similares, mas não ali. Digo, o dado "instigante" não se realizou, até onde pude ver, no que se refere ao aproveitamento e exploração da situação pelas propostas artísticas apresentadas, ou de sua relação com aquele entorno. À exceção de alguns casos, que claramente levaram em conta o contexto - notadamente a "intervenção instalativa" de Ana Luisa Dias Batista - imagem 1 - , que conjuminava um tensionamento de aspectos locais com rigor na realização; também as propostas de Celina Yamauchi, Reginaldo Pereira e Andres Sandoval tinham interesse, pelo viés contextual e plástico -, a maioria dos trabalhos parecia relativamente alheia ao ambiente, em alguns casos tornando-se mesmo "obras decorando obras" - o que se verifica mais acintosamente nas peças de Luciana Martins e nas imagens fotográficas de Miro, francamente descontextualizadas, bem como nas pinturas de Ana Elisa Egreja - imagem 2 - e nos capacetes "personalizados" pelos artistas [transformados assim em "obras de arte" posteriormente à venda, pelo que soube para fins beneficentes].


Ressalto que a questão principal não está, a meu ver, em classificar os trabalhos como "bons" ou 'ruins" em si, a priori - embora houvessem obras francamente fracas, como as peças da já citada Luciana - imagem 3 - e as de Miro, bem como outras de similar vocação tão-somente ornamental -, mas de como [não] estavam pensados e realizados dentro do que me parece um dado intrínseco à proposta original: pensar as articulações, conexões ou mesmo comentários instigantes que aquele contexto propiciava, ou mesmo impunha. A experiência de frustração se intensificou na única das 3 mesas-redondas promovidas pela galeria [para discutir questões em torno do projeto - arquitetura, arte, mercado, etc.] a que assisti. Compunham a mesma os publicitários Gabriel Zellmeister e Ana Carmen Longobardi [tb colecionadores de arte], o arquiteto Marcio Kogan e o artista Albano Afonso, com mediação de Juliana Monachesi. Digo "frustrante" porque, mesmo sem esperar debates encarniçados a partir de um evento que articulou um pouco como uma empreitada mais "simpática" que qualquer coisa, ainda assim surpreendeu a dinâmica anódina das falas. Provocou constrangimento [a mim, pelo menos] a presença de Kogan na mesa, visivelmente deslocado e quase gabando-se de não ter nada a dizer - o que a platéia pareceu achar divertido. Mas o que realmente chamou minha atenção - ressaltando que foi a única mesa a que assisti - foi o total silêncio sobre os trabalhos expostos. Falou-se, em termos vagos, sobre o espírito da coisa, das relações de aproximação da arte e da arquitetura, do estatuto atual das instituições de arte, mas nada de se comentar as obras expostas [digo, além da "obra" em si] e/ou sua relação com aquele entorno. No único momento em que pareceu surgir essa possibilidade, após um aparte de Albano que permitia que se levantasse esse ponto, a galerista, Florence, rapidamente decretou o fim do evento. A impressão final é a de que se desperdiçou uma boa oportunidade de se discutir, mesmo informalmente, uma série de questões que aquele formato expositivo propiciava - apesar ou a partir dos problemas que as obras despertavam, da natureza daquele lugar, etc. É pena.

5.10.07

Congresso AICA/ABCA[rgh]: relato de uma experiência..."curiosa"

Durante a primeira semana de outubro se realizou, na USP, o 41° Congresso Internacional de Crítica de Arte. Organizado pela AICA [Associação Internacional de Crítica de Arte] via ABCA [Associação Brasileira de Crítica de Arte, que já viveu tempos mais gloriosos], uma subsidiária sua, o evento teve uma programação agitada, com 4 dias repletos de mesas de debates e painéis de comunicações com temas diversos mas convergindo em termos como "globalização", "mercado" e "crítica". O mote oficial propunha "discutir o papel da crítica de arte no processo de institucionalização da arte contemporânea", e o formato de participação era dividido entre convidados pela organização [brasileiros e estrangeiros] e textos "selecionados" [idem].
Havia uma taxa de inscrição a ser paga - e não era baixa, cerca de R$ 200 - mas a organização também disponibilizou uma cota generosa para participantes isentos da taxa, beneficiado pela qual me dispus a conferir a coisa. Não sem alguma hesitação, é bom dizer: afinal, a atual reputação da ABCA não preza exatamente pela sintonia com tendências estético-filosófico-teóricas da contemporaneidade. Parece ter se tornado uma entidade estagnada no tempo, vivendo de uma glória incerta de dias em que a arte era "menos complicada". Isso se reflete - e se constata facilmente - no time de associados: é quase impossível reconhecer algum nome de real visibilidade e/ou atuação de destaque no meio artístico na atual relação de membros [Felipe Chaimovich é uma semi-solitária exceção]. A impressão geral é a de que é uma entidade que outrora já teve real relevância [talvez até a época de Mário Pedrosa] mas que em algum momento parou no tempo, tornando-se anacrônica e ensimesmada, gravitando numa espécie de universo à parte [em relação ao grande circuito de arte contemporânea].
Mas enfim, dos dois dias que me dispus a testemunhar, digo, tive oportunidade de acompanhar o evento [3° e 4°] não pude ter impressão mais deprimente. Apesar de haver um ou outro nome interessante, como o francês Jacques Leenhardt, o grande Nestor Canclini [a melhor fala de todas que vi, o que não surpreende - e que é sintomático de como correram as coisas: afinal tratava-se de um filósofo/antropólogo, e não exatamente de um nome atuante na crítica de artes visuais] e o já citado Chaimovich [cuja fala não pude assistir] o nível geral das falas, apresentações e intervenções era espantosamente fraco. O clima vigente é o de uma "ação entre amigos", mas num sentido que tende a ser o de compactuar e retroalimentar a dinâmica mediocremente confortável de suas sessões. Pouco ou nada se falou efetivamente da crítica de arte - pelo menos nos dois dias avaliados -, seu estatuto hoje e seu [não] espaço de atuação, questões que não podem ser ignoradas num evento realizado por uma entidade [supostamente] representativa em escala mundial essa classe. Uma exceção curiosa se deu na fala de Afonso Luz, convidado para o congresso na qualidade de representante do Ministério da Cultura. Afonso escrevia sobre arte antes de se tornar assessor especial do MINC, fato que mencionou de saída para em seguida reafirmar que ali estava não como crítico, mas como um representante do governo, especificamente para falar de economia e mercado de arte [do ponto de vista do Estado]. À parte a temática pouco atraente, sobretudo num evento com este perfil, sua apresentação foi das melhores, cativando a todos com sua tradicional retórica envolvente. Mas o que chamou a atenção foi constatar que, já ao término da sessão, em pleno "debate" público, Afonso permitiu-se já não falar apenas como um burocrata, comentando a dinâmica do mainstream artístico e analisando a função, lugar e os papéis possíveis para a crítica de arte hoje. Fato que não deixa de ser tristemente emblemático da dinâmica em que transcorreu o evento: um enviado político, essencialmente em "missão burocrática", termina por ser a melhor fala do dia num "congresso de crítica de arte" - e com isso não estou desmerecendo a intervenção de Luz, muito pelo contrário.


Poucas vezes me senti tão constrangido de estar na platéia de um evento quanto nas sessões de perguntas/debates deste congresso. Ao término de várias falas que não acrescentavam absolutamente nada ou se atinham ao senso comum, sendo por vezes mesmo desconexas, pessoas na platéia, sempre com extensas titularidades que faziam questão de reiterar*, pediam o microfone invariavelmente para agradecer, elogiar e cumprimentar os correligionários. Não vi nenhuma intervenção que problematizasse ou desenvolvesse algum aspecto na exposição dos palestrantes - e não faltaram oportunidades, posso garantir. Me surpreendeu também a menção, mais de uma vez [por vários palestrantes brasileiros, não sei se todos filiados à ABCA] às funções de crítico e de curador como se referindo a um mesmo tipo de atuação[!]. Isto não pode ser encarado apenas como um deslize, no contexto de um evento deste perfil e deste porte.
Por outro lado, avaliando a situação com mais distanciamento, talvez o problema - ou o que eu tenha visto como um problema - esteja no modo de encarar as coisas. Talvez a perspectiva por mim adotada, acreditando em alguma medida se tratar de uma oportunidade concreta para ver e ouvir pessoas interessadas em discutir tópicos candentes da contemporaneidade tenha potencializado este, digamos, conflito de expectativas. Talvez seja o caso de reconhecer se tratar de fato de um microcosmo com seus códigos estéticos, comportamentais e teóricos próprios e relativamente alheios ao que acontece grande circuito da arte contemporânea. Isso resolveria, ou ao menos amorteceria a sensação de deslocamento que tomou quem lá esteve em busca de interlocução estimulante ou aprofundamento nos debates em torno da crítica de arte na atualidade.
Seja como for, não deixa de ser frustrante perceber o descompasso existente entre o modelo de pensamento [retrógrado? anacrônico? conservador? medíocre?] praticado - ou defendido - por uma entidade que, à falta de outras, termina por ainda ser a mais representativa da "classe" da crítica de arte no país e as questões que efetivamente assolam o grande circuito da arte contemporânea.

* Uma delas, um membro da ABCA de quem não consegui guardar o nome, cometeu a temeridade de, a título de "incrementar" seu aparte, trocar a "aura" [da obra de arte] tal como postulada por Benjamin por "alma". Algo tolo citar isso, eu sei, mas infelizmente emblemático do grau de precariedade "intelectual" do evento.

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4.9.07

"Control" - quando?


Mal posso esperar por Control, 'cinebiografia romanceada' do incensado e irresistível Ian Curtis no breve mas decisivo período em que esteve à frente do seminal Joy Division - cerca de 3 anos, 77-80, antes de pegar uma corda e se juntar ao time dos "ícones-do-rock-mortos-antes-dos-30". O filme, dirigido pelo até então apenas fotógrafo -de-moda-badalado Anton Corbijn [que também dirigiu o belíssimo "clip-réquiem" para Atmosphere, do Joy, é preciso dizer], acabou de estrear em Cannes e promete, a julgar pelo pouco que já se pôde ver em trailers e trechos que vazaram na web. É baseado em Touching from a distance, livro escrito pela viúva de Curtis, Deborah, que também participou da produção. Sam Riley defende o papel de Curtis com bastante personalidade, segundo a crítica internacional.

Para além de retratar a persona complexa e intensa de Curtis [o que não é pouco], resta saber como estará reconstituído visualmente o zeitgeist que conformava a atmosfera desoladora, árida e angustiante da Manchester de final de 70's, pós-punk, 'pós-industrial' e, digamos, 'pré-indie', determinante na postura e sonoridade de bandas como o JD: "Down the dark streets the houses looked the same, getting darker now, faces look the same", já murmurava Ian.


A trilha sonora inclui - além dos próprios Joy Division [e New Order] - Bowie, Sex Pistols, Buzzcocks, Roxy Music e Iggy Pop, dentre outros. Agora é aguardar pra ver como será sua distribuição por aqui, sempre uma incógnita..."someone take these dreams away"

Altered comix







































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25.5.07

Apontamentos d'Além Mar 1

Lá se foram dois meses em Portugal. Mais especificamente, entre Lisboa (85% do tempo) e Porto. Desde que pus os pés aqui, fui tomado por um misto de sensações: o encanto de estar em terras estrangeiras além-mar, ainda que em uma "terra irmã", um país que experimenta uma - recente - condição de integrante [embora "periférico"] da União Européia, e certo estranhamento advindo da percepção de diversas contradições. Arroubos de modernidade e civilidade - máquinas automáticas de tudo, em todo lugar, trânsito que pára para pedestres, ou "peões" - convivem em curioso descompasso com amostras de inesperada precariedade cidadã - como na total ausência do conceito de "preferência" para idosos, gestantes, deficientes, etc. em quase todo lugar, notadamente em repartições públicas.
A própria Lisboa é uma cidade de contrastes, os mais marcantes ditados pela arquitetura: o secular e o contemporâneo convivem - ou antes toleram-se - em uma dinâmica esquizofrenicamente intensificada pelos avanços da indústria imobiliária. Há gruas gigantescas dominando todo o skyline da cidade, pontuando um espírito "progressista" que o governo atual não perde oportunidade de cooptar em seu discurso. Há alguns nichos onde se percebe certa resistência - tanto simbólica como efetiva - ao mecanismo voraz do capital [na forma de espigões e caixotes de ferro e vidro], como o antigo bairro de Alfama, conhecido reduto de velhos costumes e tradições lisboetas. Dos pontos 'inevitavelmente turísticos' da capital é certamente o menos glamouroso, com suas moradias modestas, uns quantos cortiços mesmo, e casas de artesanato [com placas e cartazes bilíngües, é verdade] e de fado em todo canto. Existem também alguns equivalentes a favelas; estrategicamente afastadas do centro, são quase sempre redutos de imigrantes oriundos das colônias mais pobres, como Cabo Verde, Guiné e Moçambique, sem perspectivas reais de emprego [o país atravessa uma séria crise econômica, e o desemprego é altíssimo para os padrões europeus] e frequentemente sem a situação legalizada [leia-se visto de permanência]. Ainda assim, essas micro-estruturas/'aglutinações' sociais precárias não causam tanta espécie - pelo menos para um brasileiro.

Alguns trunfos da inclusão na UE são sensíveis nas efemérides cotidianas, sobretudo quando envolvendo consumo. Ir a grandes magazines na linha de uma Fnac [o local mais barato -mesmo- para comprar eletro-eletrônicos, por exemplo, um dado atordoante para brasileiros] e supermercados pode resultar em experiências semi-epifânicas. Produtos de alta qualidade, de toda Europa, a preços inacreditáveis, para o referencial terceiro-mundista hiper-taxado de impostos destes tristes trópicos. Queijos e outros laticínios, defumados, destilados e fermentados, geléias, enlatados vintage [patês franceses, caviar] e perfumaria mais que acessíveis: é de babar. Claro, isso não é exclusividade de Portugal - provavelmente percebe-se o mesmo em vários outros países europeus -, mas pela própria sensação de familiaridade instaurada por estar num país de "língua irmã" a coisa termina por impressionar mais. É fácil apanhar-se divagando tolices como "wow, apesar de se falar português isso não é terceiro mundo"...

[continua]



14.1.07

Corpo-a-corpo com a crítica


Meu novo herói é o Uwe Boll, diretor canastrão que perpetrou algumas terríveis adaptações para cinema de games como Alone in the dark, Blood Rayne e House of the Dead. Após ser malhado sucessivamente pela crítica especializada, tanto de cinema quanto de analistas de videogames, eis que o cidadão desafia publicamente seus críticos a resolver suas diferenças com ele em cima de um ringue de boxe. Sim, é isso mesmo: o alemão chamou a crítica pro pau, literalmente. Nem todos puseram muita fé, mas Boll falou sério, e uma meia dúzia de bravos se dispôs a encarar a parada. E...foram espancados sem dó pelo cineasta, um depois do outro. Sim, o cara bateu em todos, no melhor estilo, "próximo...". E o melhor, o sujeito tem classe, sabe mesmo boxear. As lutas foram em Vancouver e seguiram o modelo oficial, com juiz, público e tudo. Não bastasse a surra, depois de derrotar seus adversários, o cineasta dizia coisas como "Quando você faz um filme como House of the Dead, o que você pode esperar dele? Um A lista de Schindler?".
[no www.youtube.com/watch?v=tqbVb-W7GqI tem um vídeo com as lutas, pros incrédulos]
Indago-me então se Uwe não teria inaugurado um novo modelo de "atitude", resgatando uma forma algo primitiva mas franca de acertar as desavenças em pleno mundo do show business... Achei a iniciativa inspiradora, e já penso na transposição do formato para o universo das artes visuais: é no mínimo estimulante imaginar artistas desafiando curadores e críticos [Affonso Romano de Sant'anna seria um forte candidato] para um vale-tudo público, com torcida, apostas...Vamos ver se vinga.