25.5.07

Apontamentos d'Além Mar 1

Lá se foram dois meses em Portugal. Mais especificamente, entre Lisboa (85% do tempo) e Porto. Desde que pus os pés aqui, fui tomado por um misto de sensações: o encanto de estar em terras estrangeiras além-mar, ainda que em uma "terra irmã", um país que experimenta uma - recente - condição de integrante [embora "periférico"] da União Européia, e certo estranhamento advindo da percepção de diversas contradições. Arroubos de modernidade e civilidade - máquinas automáticas de tudo, em todo lugar, trânsito que pára para pedestres, ou "peões" - convivem em curioso descompasso com amostras de inesperada precariedade cidadã - como na total ausência do conceito de "preferência" para idosos, gestantes, deficientes, etc. em quase todo lugar, notadamente em repartições públicas.
A própria Lisboa é uma cidade de contrastes, os mais marcantes ditados pela arquitetura: o secular e o contemporâneo convivem - ou antes toleram-se - em uma dinâmica esquizofrenicamente intensificada pelos avanços da indústria imobiliária. Há gruas gigantescas dominando todo o skyline da cidade, pontuando um espírito "progressista" que o governo atual não perde oportunidade de cooptar em seu discurso. Há alguns nichos onde se percebe certa resistência - tanto simbólica como efetiva - ao mecanismo voraz do capital [na forma de espigões e caixotes de ferro e vidro], como o antigo bairro de Alfama, conhecido reduto de velhos costumes e tradições lisboetas. Dos pontos 'inevitavelmente turísticos' da capital é certamente o menos glamouroso, com suas moradias modestas, uns quantos cortiços mesmo, e casas de artesanato [com placas e cartazes bilíngües, é verdade] e de fado em todo canto. Existem também alguns equivalentes a favelas; estrategicamente afastadas do centro, são quase sempre redutos de imigrantes oriundos das colônias mais pobres, como Cabo Verde, Guiné e Moçambique, sem perspectivas reais de emprego [o país atravessa uma séria crise econômica, e o desemprego é altíssimo para os padrões europeus] e frequentemente sem a situação legalizada [leia-se visto de permanência]. Ainda assim, essas micro-estruturas/'aglutinações' sociais precárias não causam tanta espécie - pelo menos para um brasileiro.

Alguns trunfos da inclusão na UE são sensíveis nas efemérides cotidianas, sobretudo quando envolvendo consumo. Ir a grandes magazines na linha de uma Fnac [o local mais barato -mesmo- para comprar eletro-eletrônicos, por exemplo, um dado atordoante para brasileiros] e supermercados pode resultar em experiências semi-epifânicas. Produtos de alta qualidade, de toda Europa, a preços inacreditáveis, para o referencial terceiro-mundista hiper-taxado de impostos destes tristes trópicos. Queijos e outros laticínios, defumados, destilados e fermentados, geléias, enlatados vintage [patês franceses, caviar] e perfumaria mais que acessíveis: é de babar. Claro, isso não é exclusividade de Portugal - provavelmente percebe-se o mesmo em vários outros países europeus -, mas pela própria sensação de familiaridade instaurada por estar num país de "língua irmã" a coisa termina por impressionar mais. É fácil apanhar-se divagando tolices como "wow, apesar de se falar português isso não é terceiro mundo"...

[continua]



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