1.4.06

Os primórdios da "Morte"


"A arte é, pois, incapaz de satisfazer a nossa última exigência de Absoluto. Já, nos nossos dias, se não veneram as obras de arte, e a nossa atitude perante as criações artísticas é fria e refletida. (...) Os bons tempos da arte grega e a idade de ouro da última Idade Média são idos. (...) Em todos os aspectos referentes ao seu supremo destino, a arte é para nós coisa do passado. Com sê-lo, perdeu tudo quanto tinha de autenticamente verdadeiro e vivo, sua realidade e necessidade de outrora, encontra-se agora relegada na nossa representação. (...) O que, hoje, uma obra de arte em nós suscita é, além do direto aprazimento, um juízo sobre o seu conteúdo e sobre os meios de expressão e ainda o grau de adequação da expressão ao conteúdo."

Georg Hegel, 1820 e poucos

Só pra gente lembrar onde e quando começou essa "discussão"...

31.3.06

Capotando


Fui ver Capote e achei um pouco meia-boca. Corretinho, bem filmado, é verdade, com o Philip Seymour Hoffman se esbaldando num papel "feito pra ele". O Philip sem dúvida é muito bom ator e gosto bastante dele, mas parece já estar entrando naquela "síndrome de De Niro", "reinterpretando-se" ad nauseum, com os maneirismos afetados que ele domina tão bem. A linha que separa um especialista em personagens afetados e o estigma pode ser tênue...
A
impressão que fica é a de que o filme foi um pretexto para arranjar um papel principal pro Seymour Hoffman levar um Oscar. Pena que ao invés de explorar o arco da vida e das frivolidades estimulantes que cercam um personagem tão rico como foi o polêmico Truman [apenas sugeridas no filme], optou-se por se ater a um making of pseudo-intimista do A Sangue Frio [que é mesmo um livraço], uma decisão talvez movida por expectativas de marketing, acerca do impacto que a "pegada sensacionalista" teria, com o final apresentando aquela mensagem relativamente "redentora". Sei lá, achei meio frustrante. Mas pode ter sido só o velho problema de conflito de expectativas...

30.3.06

Charles Burns: Sublime estranheza


Num certo limbo que demarca a fronteira entre ficção e memória, imerso num clima de filmes baratos de terror, se situa o universo esquizo-mutante e sombrio de Charles Burns (1955, Washington DC, EUA). Mas essa pode ser uma maneira um tanto simplória de apresentar o trabalho deste genial e diferenciado artista gráfico das HQs; para ilustrar (ou confundir) melhor, talvez se possa ter uma impressão mais abrangente das peculiaridades de sua obra se buscarmos um paralelo no cinema: imagine-se então um caldeirão de referências com diretores como Ed Woods, David Lynch, Russ Meyer, David Cronenberg e John Waters. Cada um à sua maneira, desenvolveram uma abordagem particular e imprimiram sua marca nos segmentos cinematográficos em que atuam; e mais que isso, nos filmes de todos esses caras se percebe um certo clima de estranhamento - em graus diversos - que também está presente nas criações de Burns.

Suas histórias, que começaram a chamar atenção nas páginas da lendária publicação de HQ-cabeça RAW (convidado pelo próprio Art 'Maus' Spiegelman, que coordenava a revista), na New York do início dos anos 80, são recheadas de clichês do mundo dos quadrinhos – garotos espertos, cientistas sinistros, detetives durões, sexualidade e luxúria adolescente e horror no estilo da mítica e saudosa editora EC Comics -, mas rearranjados num inquietante e nervosamente divertido padrão. Dessa trama de iconografias relativamente familiares surgem referências a arquétipos e traumas reais da infância, de perda, culpa e de alienação; no entanto, o horror parece estar sempre à espreita, dando a tônica. Burns associa uma estética 'gelada' e de alta sofisticação gráfica a um visual relativamente convencional dos comics, sublinhando a artificialidade do que tendemos a considerar 'normal', gerando assim um interessante estranhamento.

Em 1994, deu início à empreitada mais ambiciosa de sua carreira: a série Black Hole. Estimado para 14 edições, esse conto de horror moderno tem seu eixo principal numa espécie de praga que se transmite sexualmente entre adolescentes. Semi-autobiográfica, BH se passa em Seattle, onde Burns cresceu, em meados dos anos 70. Inicialmente publicada pela Kitchen Sink Press, uma das principais editoras da cena de HQ independente/alternativa nos EUA, a série foi transferida, em 1998 (na altura do n. 5) para a também influente Fantagraphics pelo próprio autor. Desde sua estréia, BH tem sido indicada anualmente para o Eisner e o Harvey Awards, principais prêmios da área de HQ, e ainda não finalizada, foi incluída no Top 100 Comics of the Century do respeitado The Comics Journal. Em 1999, a mesma Fantagraphics começou uma empreitada ambiciosa (e bem-vinda): as obras completas de Charles Burns. Pensada para 5 volumes em brochura - começando por El Borbah e Big Baby, algumas de suas primeiras séries regulares -, esse projeto irá reunir toda a sua produção até Black Hole.

Burns vive hoje na Filadélfia com sua mulher, a pintora Susan Moore, e suas duas filhas pequenas. E mantendo o clichê, o cara é uma figura jovial e pé-no-chão, ao contrário do que suas histórias possam sugerir. Evita entrar em escrutínios sobre sua produção, preferindo que os leitores mergulhem em sua sedutora e perturbadora obra por si mesmos – o que não se garante é que saiam ilesos.

Ruminando

"Sou a favor de uma arte que se confunda com a merda cotidiana e que acabe por vencê-la. Sou por uma arte que conte o clima do dia, ou onde fica essa ou aquela rua. Sou a favor de uma arte que ajude velhas senhoras a atravessar a rua."
Claes Oldenburg , 1961

29.3.06

Do Fluxus


O que me interessa no Fluxus: gosto das dissoluções do conceito de autoria - com a característica de ênfase na participação coletiva e na idéia de redes de artistas -, bem como da própria noção de arte, na esfera "da vida", como mais ou menos entendido como proposta central deste não-movimento; Beuys, sobretudo, será uma figura emblemática em levantar a bandeira de uma semi-cruzada pela democratização da arte ["todos são artistas" em potencial, etc.] - com sucesso relativo, a meu ver, embora eu simpatize com sua "causa".
No entanto, até por por sua própria estrutura tão, digamos, aberta, acho que se fez muita tolice em nome de "propostas Fluxus"... Afinal, já que tantos "podiam ser artistas", é quase natural que isso ocorresse. E não custa lembrar que o glorioso George Maciunas, sempre apontado como mentor ou figura central do Fluxus, atuava "paralelamente" - e enriquecendo - como um ávido especulador imobiliário em NY, na época pré-boom do Village - no duro!

Dos "arte-coletivos"



Do meu ponto de vista essa questão dos 'ajuntamentos' de artistas embute um dado importante que acho que costuma ser solapada.
É certo que a idéia de artistas trabalharem ou manterem formas de ação em grupo ou coletivos não é nova nem no Brasil nem no mundo (pode-se pensar nos pré-rafaelitas, nos fauves, nos dadá, etc.) nem tampouco esgotada - e certamente não é malvinda, em princípio.
O ponto é que esse tipo de movimentação/articulação em 'coletivos' (e há uma insistência nesse termo, o que parece em muitos casos reforçar uma pretensa postura 'anti-sistema' ou de levantar bandeiras 'artivistas' ou proto-revolucionárias) deveria se contituir, a meu ver, de forma muito mais ESPONTÂNEA e natural do que parece vir efetivamente acontecendo de uns 5, 6 anos pra cá. De repente parece que este tipo de dinâmica se torna uma prerrogativa, a ser alcançada a todo custo... Tem coletivos-grupos-ligas-confrarias de artistas pipocando semanalmente aqui e ali. Eu mesmo, pela minha, digamos, profissão, tentei acompanhar mais de perto essa cena (sim, já existe uma cena) há um tempo até que desisti, resignado, tamanha a profusão de iniciativas similares.
E na esteira desse ritmo alucinado se esquece de avaliar as ações e 'produtos práticos' desses grupos, frequentemente limitados a ações simpáticas e irreverentes e só - como se o mais importante fosse a iniciativa de se unir em um coletivo em si, ou a adesão a determinado slogan.
Repito que em princípio acho um formato de ação saudável e potencialmente produtivo (eu mesmo integro espécies de 'coletivos de crítica' na revista Numero e em grupos na MariAntonia e CCSP); só que passei a observar com alguma desconfiança a compulsividade frenética que assola a dinâmica de conformação desses grupos de artistas, bem como a heterogeneidade e pobreza de 'resultados' de algumas destas iniciativas - bem como as frequentes contradições em discursos 'anti-sistema' e mesmo 'antiarte' e os evidentes anseios em integrar esse mesmo sistema.







É de pequeno que se cria consciência crítica...

28.3.06